Interferência do Youtube na Arquivologia.
Um trecho retirado do artigo de Carlos Adriano Jeronimo de Rosa e Claudio
Marcondes Castro Filho a qual um dos temas é a relação, ou como os autores
citam “interferência” do Youtube na arquivologia. Vale a leitura, pois trás algumas
considerações importantes sob esse assunto moderno e pouco explorado pela
arquivologia.
“INTERFERÊNCIA
DO YOUTUBE NA ARQUIVOLOGIA”
Está fora do
propósito deste artigo tratar de questão tão polêmica e complexa. Este espaço
permite apenas lançar, brevemente, certas ponderações sobre tais interferências
e difrações que dispositivos como o YouTube vieram trazer para os cânones e as
estantes convencionais da arquivologia. Ainda não há o devido distanciamento no
tempo para se avaliar todas a simplicações e novas configurações que o YouTube
coloca para a arquivologia. Uma questão das mais instigantes é a de sua própria
natureza: uma forma de compartilhamento em rede. Esse caráter supostamente
democrático leva a outra questão não menos instigante: por que as pessoas
compartilham? Seria uma forma de difusão de conhecimento ou de exibicionismo de
alusões?
As tecnologias
da informação e comunicação interagem com a arquivologia, produzindo um
conjunto de reflexões afins que dialogam entre si e geram um impacto na própria
identificação de cada uma delas, ao tornar quase indistintas as categorias de
sujeito e objeto: “o arquivo passou a ser cada vez mais caracterizado como um
sistema de informação, e objeto de estudo da arquivologia, como a informação
arquivística” (ARAÚJO, 2014, p. 86). Para o found footage, todo arquivo
é um banco de dados de imagens e de sons disponíveis para apropriações, um
sistema de informação audiovisual que é fonte e repositório, referência e
inspiração, memória e conhecimento.
A constituição do
YouTube como um acervo em rede, cuja função básica parece ser a do
compartilhamento e acesso livres, de natureza colaborativa e obra
aberta,abalaria as noções tradicionais de “arquivo administrativo e arquivo
histórico”, ligadas à ideia dos “direitos das instituições ou indivíduos”
(PAES, 2002, p. 19).
Nesse
aspecto, o YouTube contestaria noções clássicas definidas por uma terminologia
arquivística sobre acervo, acesso, doação, documento,protocolos de gestão e
arquivamento. Por sua natureza (tipo de suporte, forma de constituição), o
YouTube constituiria “um sistema híbrido de gestão da informação” (SCHÄFER; KESSLER,
2009, p. 275) e integraria uma espécie de cultura visual que depende de
“técnicas de informação para transformar uma larga variedade de meios num
sistema de imagem-texto –um banco de dados de termos digitais, um arquivo sem
museus” (HAL FOSTER 1996, apud SCHRÖTER,
2009, p. 330), que reordena a forma da informação e sua difusão, a forma da
memória cultural e sua difusão. O hibridismo e a metamorfose do YouTube
implicariam outros conceitos de:
a) acervo, pois se
trata, mais propriamente e tecnicamente, de um banco de dados, móvel e
cambiante, volátil e sem centro;
b) acesso, pois
seu caráter de open Access parece oferecer uma entrada ilusória e
ilimitada ao seu conteúdo franqueada ao usuário;
c) doação, pois os
materiais ali disponibilizados em sua maioria não foram doados por seus autores
ou detentores, e sim por “apropriadores”;
d) documento, pois
os materiais são carregados (uploaded) após manipulações feitas por quem
os disponibiliza, questionando a integridade documental;
e) protocolos de
gestão, pois o modo de disponibilizar, sem normas,afeta o modo de difusão e
controle dos materiais;
f)
arquivamento, pois os materiais estão disponibilizados sem qualquer forma de
organização, sujeitos a indexação precária (meras “tags”) e mecanismos
aleatórios de busca.
Buscando identificar
interseções entre os campos da arquivologia e da ciência da informação, Fonseca
(2005, p. 12) pretende verificar “a emergência de novos espaços de produção do
conhecimento arquivístico e de uma nova pauta de reflexões sobre a redefinição
dos objetos prioritários da arquivologia”. Seria possível imaginar, a partir do
método found footage, o YouTube como um destes novos espaços e como um
dos proponentes desta nova pauta: compartilhamento e difusão tornam-se gestos
gêmeos, que produzem conhecimentos a partir de um arquivo e redefinem os
elementos, as funções e os usos enfeixados no banco de dados arquivísticos.
Uma das feições
mais características da ciência da informação é a de suas relações
interdisciplinares: “psicologia, arte etecnologia, biblioteconomia,
comunicação, filosofia, lógica, linguística, pesquisa operacional e metodologia
de pesquisa”, são alguns dos exemplos citados por Fonseca (2005, p. 26), apoiada
em Borko, Foskett, Brookes, Le Coadic e Deschâtelet. Este último considera a
arquivologia uma “ciência da informação” e refere-se à expressão information
studiesem vez de information science, o que nos leva a uma
aproximação com os chamados cinema studies.
Abordando uma
“arquivologia pós-moderna”e utilizando Terry Cook como referência, Fonseca
(2005, p. 62) conclui que [...] as instituições arquivísticas deixarão de ser
lugares onde os usuários vão obter informações para serem provedores de acesso
remoto, via internet, a milhares de sistemas arquivísticos interligados. Outra vez, a
partir do método found footage, o YouTube poderia ser citado como um
caso deste deslocamento institucional, ao se configurar justamente como
“provedor de acesso remoto” que interconecta produtores-usuários de
informação-conhecimento, como seriam definidos os que compartilham arquivos e
dados.
Ainda seguindo
Cook, Fonseca (2005, p. 64) aponta “[...] o fato de que hoje o arquivista deve
ser um mediador ativo na ‘formatação da memória coletiva através dos
arquivos’”. Tal formulação parece encaixar-se sob medida justa a este mediador
que é o YouTube, ou melhor, que é a rede de indivíduos que forma o fenômeno
arquivístico chamado YouTube. E cada indivíduo que difunde ou disponibiliza
acervos no YouTube torna-se, por sua vez, uma espécie de instância desta
mediação sem controle.
Mesmo com todas as
implicações de poder dadas pela própria condição de conglomerado capitalista
que constitui o YouTube, é uma forma de arquivo que parece democrática, não
apenas porque oferece um manancial de informações audiovisuais,também se presta
à reapropriação de materiais audiovisuais, um campo de produção, reprodução e
recepção de conhecimento. Para o dispositivo found footage, o arquivo
configura-se “[...] como forma de interlocução, de informação, de conhecimento”
e é dotado de um “[...] papel mediador, de serviço de comunicação e informação,
de ensino e aprendizagem”(CASTRO FILHO, 2011, p. 147).
A
interferência do YouTube na arquivologia é apresenta mais na ordem do desafio e
do questionamento, na medida em que implica uma reconfiguração de conceitos, um
reposicionamento de posturas, num momento de pouco distanciamento do fato
histórico dado seu fenômeno recente,se levado a sério pelos estudos acadêmicos,
o YouTube pode fornecer novas balizas para se interrogar os novos estatutos e
funções de uma ciência que analisa o arquivo.
ROSA, C. A. J.; CASTRO FILHO, C. M. Reapropriação de arquivos cinematográficos em tempos de youtube. Ágora, v. 26, n. 53, 2016. Disponível em: <http://www.brapci.inf.br/v/a/22104>. Acesso em: 11 Abr. 2018.
Link: http://www.brapci.inf.br/index.php/article/view/0000022104/fae53881167e76f62056bde00aca7b69/
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